A Associação da Auditoria de Controle Externo do Tribunal de Contas da União - AudTCU recebeu, com perplexidade e constrangimento, o resultado da Operação Murder Inc. deflagrada pela Polícia Federal e que resultou na prisão preventiva de um Magistrado de Contas (Conselheiro) do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ) por suspeita de ser um dos mandantes do assassinato da Vereadora Marielle Franco e do Motorista Anderson Gomes, além da investigação de possível participação de comissionado do órgão no caso. A prisão preventiva foi mantida por unanimidade do Supremo Tribunal Federal - STF. O nome Murder Inc. (Murder, Incorporated), adotado para denominar a Operação, refere-se à gangue de matadores a serviço das máfias de Nova York na década de 1930.
Os fatos envolvendo membro do Tribunal de Contas, de extrema gravidade, afrontam a ética pública e o bem comum, provocando reação de indignação na sociedade brasileira, com ampla repercussão nos principais jornais internacionais (The Washington Post, The Guardian, The New York Times, e Le Monde).
A Constituição da República abriga as balizas norteadoras da Administração Pública, exigindo daqueles que personificam o Estado postura e imagem compatíveis com o dever irrenunciável de zelar pelas suas instituições. A conduta dos Magistrados de Contas - com prerrogativas e deveres de Ministros do Superior Tribunal de Justiça e Desembargadores dos Tribunais Estaduais, respectivamente - é fundamental para resguardar a confiança dos cidadãos no resultado das auditorias e julgamento de contas daqueles responsáveis pela aplicação de recursos públicos.
O possível envolvimento de agentes do TCE-RJ no assassinato da Vereadora Carioca põe em xeque a credibilidade do controle externo brasileiro. Além de abalar a imagem do TCE-RJ, o encândalo compromete a imagem do TCU, que realiza auditorias coordenadas com a participação de tribunais dos entes subnacionais e chancela a participação destes órgãos em discussões nos organismos internacionais, o que precisa ser repensado e protegido com a previsão de condicionantes específicas.
Esse cuidado é fundamental, na medida em que a desconfiança dos cidadãos em relação à lisura da atuação dos tribunais de contas e de seus agentes de Estado gera suspeição, descrédito e desesperança, comprometendo a obediência e a submissão dos gestores e dos cidadãos à lei e às estruturas que regulam a vida social.
A AudTCU reafirma sua confiança e parabeniza a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, na oportunidade em que destaca a corajosa e admirável atitude da Subprocuradora-Geral da República Raquel Dodge que, quando esteve à frente da PGR, instaurou Incidente de Deslocamento de Competência (IDC) para requerer a federalização do crime de elevada gravidade e repercussão social que resultou na morte da Vereadora Marielle Franco.
RISCO PARA IMAGEM DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO NO PLANO INTERNO E INTERNACIONAL
A AudTCU acompanha a conclusão do inquérito e o oferecimento da denúncia contra os suspeitos de mandar assassinar a Vereadora Carioca. Não se prega justiçamento, ao arrepio do devido processo legal. Todavia, espera-se, de forma legítima, que o TCU adote postura mais cuidadosa e estabeleça condicionantes para realização de auditorias coordenadas e celebração de outras cooperações com os Tribunais de Contas estaduais brasileiros, de forma a não comprometer sua imagem centenária com escândalos desse tipo e outros desvios em função de assimetrias na organicidade e funcionamento das cortes subnacionais, que resistem em observar os mandamentos constitucionais que impõem a simetria.
Não se pode conceber que o Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, ainda integrado por Magistrado preso por suspeita de ser um dos mandantes do assassinato de uma Vereadora, seja membro da Organização Latino-Americana e do Caribe de Entidades Fiscalizadoras Superiores (OLACEFS), organismo internacional do qual o TCU é membro pleno. O TCE-RJ já havia sido descredenciado por razões administrativas em 2010, retornando à condição de membro associado da OLACEFS em 2022.
É inaceitável que tribunais de contas subnacionais brasileiros figurem na OLACEFS na condição de membros associados - ao lado dos Tribunais de Contas da Espanha e de Portugal e da Corte de Contas da Itália - mesmo que haja em seu quadro Magistrado de Contas preso preventivamente. Em abril de 2017, o mesmo Magistrado de Contas já havia sido preso na Operação Quinto do Ouro, afastado das funções judicantes por suspeita de fraude e corrupção.
A imagem institucional da Entidade de Fiscalização Superior brasileira (TCU) é ativo intangível dos mais valiosos, consoante o disposto no próprio Referencial de Combate à Corrupção editado pelo TCU, razão pela qual a instituição autônoma precisa gerenciar, permanentemente, os riscos que possam comprometer a sua credibilidade, inclusive no plano internacional. Atualmente, o TCU não apenas preside a INTOSAI (The International Organization of Supreme Audit Institutions), como também representa o Brasil no Conselho de Auditoria das Nações Unidas (Board of Auditors), para realizar auditoria externa nas finanças do organismo internacional, de seus fundos, programas e missões de paz.
Dada a gravidade da acusação, o Subprocurador-Geral do Ministério Público de Contas junto ao TCU, Lucas Rocha Furtado, pediu providências aos órgãos competentes.
CASO MARIELLE É OPORTUNIDADE PARA REFORMAR TRIBUNAIS DE CONTAS
A Operação Murder Inc. pode retirar o Magistrado de Contas do TCE-RJ da cena pública, mas não é suficiente para evitar novas indicações de pessoas envolvidas em delitos, sem reputação ilibada e notório saber reconhecido nas áreas exigidas constitucionalmente. No cenário atual, a desacreditação dos tribunais de contas é inexorável, sendo necessária uma reforma, pelo Congresso Nacional, dos critérios de indicação e escolha dos membros dos Tribunais de Contas do Brasil.
Este lamentável episódio é mais uma oportunidade para o Congresso Nacional discutir as propostas de reforma dos tribunais de contas em andamento, cujos membros não raramente ocupam as páginas policiais sob acusações de desvio de conduta incompatível com a função pública de Magistrado de Contas, regida, por previsão constitucional, pela Lei Orgânica da Magistrutura (LOMAN) e pelo Código de Ética da Magistratira aprovado pelo Conselho Nacional de Justiça-CNJ). Prerrogativas de Magistrado atribuídas aos Conselheiros de Contas devem ser proporcionais às mesmas vedações e padrão de conduta exigidos.
Para aumentar a confiança da população e dos fiscalizados no controle externo e mitigar riscos para imagem do TCU, a AudTCU formulou o texto aproveitado na autoria do Projeto de Lei Complementar nº 79, de 2022, que se encontra com parecer favorável na Câmara dos Deputados, pronto para votação.
A proposta, que regulamenta a Constituição Federal, prevê que o TCU deve, em 180 dias, encaminhar projeto de lei ao Congresso Nacional para padronizar o rito do processo de controle externo na Federação e definir “critérios para comprovação objetiva do cumprimento dos requisitos” constitucionais para indicação, nomeação e posse de Ministros e Conselheiros das Cortes de Contas.
A proposta também limita a 10% o total de cargos em comissão em cada Gabinete de Conselheiro dos Tribunais de Contas estaduais e municipais, já que o TCU dispõe de tão somente 2 cargos em comissão em cada Gabinete.
O então Deputado Domingos Brazão foi indicado para o TCE-RJ com a promessa de poder indicar até 55 agentes sem concurso público.
PROPOSTA JÁ DEFINE CRITÉRIOS OBJETIVOS MÍNIMOS PARA COMPROVAÇÃO DE REPUTAÇÃO ILIBADA PARA INGRESSO NA MAGISTRATURA DE CONTAS
Os critérios objetivos para indicação e posse de Magistrados de Contas já foram apresentados no Projeto de Decreto Legislativo nº 1.580, de 2014. Pela proposta, a indicação, a nomeação e a posse para o cargo de Magistrado de Contas devem ser precedidas de apresentação das mesmas certidões que o Conselho Nacional de Justiça-CNJ exige para ingresso na Magistratura Nacional (ficha de antecedentes criminais, certidões negativas nos juízos cíveis e criminais), apresentação de diploma de graduação ou de pós-graduação nas áreas de conhecimento previstas constitucionalmente (Direito, Administração, Contabilidade, Economia) e participação da Ordem dos Advogados do Brasil na sessão pública de arguição, com a finalidade de assegurar a transparência e a qualificação técnica durante a sabatina.
Para ampliar a participação de técnicos na composição, a proposta também prevê que uma das vagas de indicação de cada Casa Legislativa será preenchida por escolha feita dentre membros da carreira finalística de auditoria de controle externo do TCU.
Essa regulamentação é necessária e urgente para preservar o controle externo e aumentar o êxito em ações ajuizadas no Poder Judiciário para impedir a indicação e posse nos cargos vitalícios de Magistrados de Contas por candidatos que, flagrantemente, não comprovam o cumprimento dos requisitos constitucionais exigidos.
Em 2015, a Associação dos Ministros e Conselheiros Substitutos dos Tribunais de Contas – Audicon impetrou, sem sucesso, mandado de segurança na Justiça do Rio de Janeiro para impedir a indicação do então Deputado Domingos Brazão ao cargo de Conselheiro pelo fato de tramitar contra ele ação de improbidade administrativa (o que compromete a reputação ilibada) e pela falta de comprovação do cumprimento do requisito de notório saber (apenas nível médio completo), além do homicídio cometido anos antes.
LEI DA FICHA LIMPA NÃO PREVÊ REQUISITO DE COMPROVAÇÃO DE REPUTAÇÃO ILIBADA EXIGIDA PARA INGRESSO NA MAGISTRATURA NACIONAL E DE CONTAS
É precária a tentativa de adotar as condicionantes da Lei da Ficha Limpa para ingresso na Magistratura. As condicionantes de elegibilidade para cargo eletivo não atendem o requisito constitucional da reputação ilibada exigido para ingresso em cargos vitalícios, de modo que a regulamentação prevista na Lei da Ficha Limpa não é suficiente para comprovar tal requisito no ingresso nos cargos de Ministros do TCU, do STJ, do Supremo Tribunal Federal e nas escolhas de Magistrado pelo Quinto Constitucional.
A AudTCU atua para que o Congresso Nacional aperfeiçoe as normas constitucionais e infraconstitucionais com a finalidade de objetivar a comprovação do cumprimento dos requisitos de notório saber e reputação ilibada na indicação para os cargos vitalícios de Magistrados de Contas.
Brasil, 25 de março de 2024.
Diretoria da AudTCU