A Associação da Auditoria de Controle Externo do Tribunal de Contas da União | AUD-TCU vem a público manifestar sua preocupação com o Texto Substitutivo da PEC nº 48-C, de 2019 (PEC/SF nº 61, de 2015) votado, em dois turnos, pelo Plenário da Câmara dos Deputados na noite desta terça-feira (19/11/2019). O texto aprovado propõe a criação de modalidade sui generis de repasse federal para Estados, Distrito Federal e Municípios proveniente de emendas parlamentares individuais.
Pela proposta, haverá a nova modalidade de ‘transferência especial’, cujo recurso pertencerá a receita dos entes subnacionais e a sua aplicação ficará a cargo dos órgãos de controle interno e Tribunais de Contas estaduais, à semelhança dos fundos de participação que integram o pacto federativo fiscal. Embora os recursos pertençam aos entes subnacionais, haverá vinculação a objetivos definidos na emenda parlamentar. Pelo menos 70% dos recursos deverão ser destinados a investimentos - o que é positivo -, vedado o pagamento de encargos referentes ao serviço da dívida. Nesse tipo de repasse, o Congresso Nacional abrirá mão de exercer a fiscalização que lhe compete constitucionalmente, além de impedir a atuação de todos os órgãos federais de controle.
Outra modalidade proposta consiste na ‘transferência com finalidade definida’, cujos recursos federais serão repassados aos entes subnacionais para aplicação em áreas de competência constitucional da União. Tais repasses serão fiscalizados pelo órgão de controle interno do Poder Executivo, pelo componente federal do Sistema Nacional de Auditoria do SUS (Denasus), pelo Tribunal de Contas da União e pelo Congresso Nacional, assegurada a atuação da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e da Justiça Federal.
Apesar dos inegáveis esforços da Câmara dos Deputado para aperfeiçoar a redação, a proposta votada ainda apresenta incongruências com a própria Constituição da República. Isso porque os textos do o inciso II do § 2º e do § 5º do art. 166-A da PEC nº 48, de 2019 afetam cláusula pétrea, desarticulando a lógica do pacto federativo fiscal, uma vez que a União não pode impor restrições à aplicação de recursos que pertencem aos Municípios.
O termo adotado para qualificar a ‘transferência especial’ é o mesmo que define o pacto federativo fiscal no artigo 158 da Constituição da República (FPM), abrindo espaço para questionamento jurídico por milhares de Municípios que não forem beneficiados pelas emendas parlamentares individuais, dada a escassez dos recursos dessa natureza. A comparação dos textos revela o elevado risco da proposta:
Definição do Pacto Federativo Fiscal na Constituição da República de 1988 | PEC nº 48, de 2019 |
Art. 158. Pertencem aos Municípios: I - o produto da arrecadação do imposto da União sobre renda e proventos de qualquer natureza, incidente na fonte, sobre rendimentos pagos, a qualquer título, por eles, suas autarquias e pelas fundações que instituírem e mantiverem; II - cinqüenta por cento do produto da arrecadação do imposto da União sobre a propriedade territorial rural, relativamente aos imóveis neles situados, cabendo a totalidade na hipótese da opção a que se refere o art. 153, § 4º, III; III - cinqüenta por cento do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre a propriedade de veículos automotores licenciados em seus territórios; IV - vinte e cinco por cento do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação. |
“Art. 166-A. As emendas individuais impositivas apresentadas ao projeto de lei do orçamento poderão alocar recursos a Estados, Distrito Federal e Municípios por meio de: I - transferência especial; ou ... § 2º Na transferência especial a que se refere o inciso I do caput deste artigo, os recursos: I – serão repassados diretamente ao ente federado beneficiado, independentemente de celebração de convênio ou de instrumento congênere; II - pertencerão ao ente federado no ato da efetiva transferência financeira; e |
Recursos federais repassados aos Municípios independentemente da celebração de qualquer instrumento jurídico e que pertence aos referidos entes são aqueles que constituem o pacto federativo fiscal, o qual não pode ser abolido, tampouco cabe a imposição de qualquer tipo de restrição por parte do ente transferidor. Segundo a jurisprudência pacífica do STF, recursos com tais características integram as receitas próprias dos destinatários e não estão sujeitos a qualquer condição por ocasião de sua entrega, conforme definido explicitamente no art. 160 da Carta Política.
Também não procede a parte do discurso da Deputada Gleisi Hoffmann durante a votação1 no Plenário da Câmara dos Deputados no sentido de que a CGU e o TCU fiscalizariam a aplicação das transferências do FPE e do FPM, o que não condiz com a pacífica jurisprudência do STF.
Em razão disso, a AUD-TCU alerta os Senadores da República sobre o elevado risco de o STF, provocado por algum Município não beneficiado por emendas parlamentares, vir a dar interpretação conforme de modo a entender que as dotações das emendas parlamentares individuais devem se somar ao FPM. Ao invés de declarar o texto da emenda inconstitucional, o STF pode vir a conferir às emendas parlamentares individuais a mesma natureza do fundo de participação do art. 158 da Constituição da República, determinando que a dotação orçamentária destinada a tal finalidade seja somada ao FPM para distribuição a TODOS os Municípios de acordo com os critérios objetivos e uniformes definidos na Lei Complementar nº 91, de 1997. Na prática, interpretação nesse sentido restaria por acabar com a emenda parlamentar individual, risco que não está sendo devidamente considerado pelos Congressistas.
A proposta que insere a fiscalização de recursos próprios federais no rol de competência dos Tribunais de Contas Estaduais e Municipais afasta não apenas a atuação do TCU e da CGU, afetando diretamente as competências do Denasus, da Polícia Federal, do Ministério Público Federal, da Justiça Federal, da próprio Congresso Nacional, que perde o poder de realizar CPI sobre eventuais aplicações irregulares dos recursos federais.
A crise fiscal a que chegaram vários Estados2 na atualidade decorre, em boa medida, de “maquiagem”, interpretações equivocadas e excesso de permissividade por parte de Tribunais de Contas estaduais3 sobre a aplicação da própria Constituição da República e de normas gerais editadas pela União, a exemplo da Lei de Responsabilidade Fiscal-LRF, a Lei de Diretrizes Básicas da Educação-LDB (Lei nº 9.394, de 1996) e a Lei Complementar nº 141, de 2012, cujo ônus fiscal e social recai sobre o cidadão, seja pela precarização de políticas públicas e aumento da carga tributária, seja sucessivas rodadas de postergação e de refederalização de dívida pública dos Estados4, o que compromete as finanças nacionais e cria uma situação de risco moral para as normas gerais de finanças públicas. Assim, não há razão de afastar a competência dos órgãos federais para delegar a fiscalização para os órgãos locais.
O Relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Ambulâncias5, também conhecida como “CPMI das Sanguessugas” aponta com bastante clareza como se deu a ramificação do esquema entre o Ministério da Saúde e diversos Municípios. Não fosse o poder de inquérito do Congresso Nacional6 e de outros órgãos federais, para atuarem de forma articulada e sistêmica nos órgãos federais e municipais, o esquema que envolvia a destinação de recursos provenientes de emendas parlamentares provavelmente não seria desvendado. A partir de uma atuação articulada com o Congresso Nacional e a própria Polícia Federal, o TCU7, por meio de diversos julgados, declarou empresas inidôneas e determinou o ressarcimento do dano aos cofres públicos. Por envolver irregularidades no Ministério da Saúde e em Prefeituras, foi a Justiça Federal8 – e não a Justiça Estadual – que condenou de forma articulada agentes em vários Estados9 por envolvimento na “Máfia das Sanguessugas”;
A pulverização da fiscalização de recursos de natureza essencialmente federal por vários Tribunais de Contas e demais órgãos de controle estaduais e municipais dificulta a realização de investigação necessária para o diagnóstico de fraudes sistêmicas na aplicação de recursos federais de forma descentralizada na Federação. Nesse sentido, a proposta representa inaceitável retrocesso em relação aos avanços conquistados com a promulgação da Constituição de 1988, cujo resultado pode ser o aumento da percepção de impunidade no País.
Em face de todo o exposto, a AUD-TCU requer aos Senadores da República a SUPRESSÃO do inciso II do § 2º e do § 5º do art. 166-A da PEC nº 48-C, de 2019, e conclama a sociedade brasileira a defender a preservação da competência do próprio Congresso Nacional de investigar por meio de CPMI (à semelhança da “CPMI das Sanguessugas”), do TCU, da CGU, do Denasus, do MPF, da Polícia Federal e da Justiça Federal para a defesa da regular aplicação dos recursos federais de emendas parlamentares individuais destinados a Estados e Municípios.
Brasília, 19 de novembro de 2019.
DIRETORIA AUD-TCU
Fonte: Comunicação AUDTCU.
(1) https://escriba.camara.leg.br/escriba-servicosweb/html/58737
(2) https://oglobo.globo.com/economia/seis-estados-tentam-entrar-no-regime-de-recuperacao-fiscal-para-sanar-crise-23377812
“Seis estados tentam entrar no Regime de Recuperação Fiscal para sanar a crise
Ministério da Economia sugere a governadores aumentar impostos e privatizar empresas
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O governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), afirmou que o governo federal capitaneará um processo para responsabilizar os governadores anteriores e Tribunais de Contas Estaduais (TCEs) pela quebradeira generalizada nos estados.
Segundo Barbalho, o governo federal compreende que os novos gestores estão comprometidos com o ajuste das contas dos estados e não podem ser punidos pela má conduta dos antecessores. Ele disse que o Tesouro Nacional pedirá aos TCEs um levantamento de alertas feitos e ignorados pelos antigos governadores. O assunto deve ser tratado no Fórum dos Governadores em fevereiro.”
(3) http://www.nosopinando.com.br/crise-fiscal-e-financeira-de-goias-levanta-duvidas-sobre-papel-do-tribunal-de-contas/
“Crise financeira de Goiás levanta dúvidas sobre papel do Tribunal de Contas
Governador Ronaldo Caiado alega que está recebendo o Estado com um rombo financeiro que ultrapassa R$ 3,4 bilhões, incluindo o calote na folha de dezembro de 2018. Cumprimento dos índices constitucionais também estão sendo descumpridos desde 2014
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O quadro de completo descalabro das contas públicas do Estado de Goiás, que vieram à tona depois que o grupo de Marconi Perillo (PSDB) perdeu as eleições de outubro próximo passado, é de assustar e levanta uma questão crucial: por que rombos bilionários no caixa do Estado não foram detectados tempestivamente pelos órgãos de controle, a exemplo do Tribunal de Contas?”
(4) https://www.jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/entenda-o-regime-de-recuperacao-fiscal-a-salvacao-de-goias-para-caiado-156791/
(5) https://www.senado.gov.br/comissoes/CPI/Ambulancias/CPMIRelatorioFinalVolumeI.pdf
(6) https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/78141
(7) https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias-antigo/tcu-declara-inidoneidade-de-empresas-envolvidas-em-esquema-para-compra-de-ambulancias.htm
(8) http://www.mpf.mp.br/ba/sala-de-imprensa/noticias-ba/operacao-sanguessuga-justica-federal-condena-ex-prefeito-de-tapiramuta-ba-por-fraude-em-licitacoes
(9) https://noticias.bol.uol.com.br/brasil/2009/06/05/justica-federal-condena-cinco-por-envolvimento-com-mafia-das-sanguessugas.jhtm