Na manhã desta segunda-feira (23), a Procuradora da República do Ministério Público Federal, Silvia Pontes, e o Procurador do Ministério Público de Contas junto ao Tribunal de Contas da União, Marinus Marsicus, visitaram a fábrica da Hemobras em Pernambuco para verificar se os prazos da obra estão sendo cumpridos.
Atualmente, para que a estrutura fique pronta, falta a entrega de duas unidades industriais. A primeira, de Fator VIII Recombinante - medicamento usado no tratamento de hemofilia -, será inaugurada em dezembro, dois meses depois do previsto. A última a ser finalizada é a unidade de hemoderivados, cujas obras têm previsão de conclusão em dois anos.
A construção já foi alvo de investigação por irregularidades em contratos. Em 2022, a Justiça Federal condenou três pessoas por desviar dinheiro da construção da fábrica da Hemobrás em Pernambuco. Dois réus são ex-funcionários da empresa pública e outra, representante de uma construtora. A denúncia foi feita pelo Ministério Público Federal, em um desdobramento da Operação Pulso, deflagrada em 2015. De acordo com a reportagem, o valor da obra, segundo a denúncia, era de R$ 22,9 milhões, mas subiu, "injustificadamente", para R$ 74,8 milhões. A irregularidade foi apontada pelo Tribunal de Contas da União, que subsidiou a ação judicial. Relembre o caso!
Com o término das obras, previsto para 2025, a expectativa do Governo Federal é tornar o Brasil um país autossuficiente na produção de hemoderivados, medicamentos que têm como matéria-prima o plasma humano, um dos componentes do sangue.
O tema é de interesse nacional e merece atenção de toda sociedade, especialmente em razão dos riscos decorrentes da possível comercialização de hemoderivados num comércio de produção restrita no plano internacional. De acordo com Relatório que fundamenta o Acórdão nº 31/2017-TCU-Plenário, para "reduzir a dependência externa do Brasil no setor de derivados do sangue, a empresa trabalha com a produção de medicamentos essenciais à vida de pessoas com hemofilia, além de portadores de imunodeficiência genética, cirrose, câncer, AIDS, entre outras patologias. Apesar da importância, os hemoderivados são produzidos por apenas quinze países, conforme consignado no Acórdão 1.444/2014-TCU/Plenário".
VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL À COMERCIALIZAÇÃO DE HEMODERIVADOS
A comercialização de hemoderivados é proibida pelo art. 199 da Constituição Federal, mas Proposta de Emenda Constitucional tramita no Congresso Nacional para flexibilizar essa vedação, com a finalidade de possibilitar a atuação de empresas privadas na produção e comercialização de hemoderivados. De acordo com o Ministério da Saúde, a iniciativa pode abrir espaço para que doadores recebam uma compensação financeira. O Presidente da Hemobrás também se manifestou contrariamente à PEC. Saiba mais em G1!
Em agosto deste ano, o MPF e o MPC/TCU emitiram Nota Técnica questionando aspectos da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 10/2022, que, entre as alterações apresentadas, busca autorizar a coleta remunerada do plasma humano bem como a comercialização do plasma sanguíneo e dos hemoderivados.
A PEC altera o art. 199 da Constituição Federal e está em fase de análise pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal. Para os Ministérios Públicos, a legislação atual sobre o tema já é suficiente e as mudanças propostas, conforme analisado na nota, além de contrárias ao interesse público, vão de encontro a princípios e garantias constitucionais, entre os quais, a dignidade humana, a segurança nacional, e o direito à saúde. Confira aqui a íntegra da Nota Técnica!
Diante dos termos da proposta e de seus riscos, nunca é demais relembrar as lições do Professor Emérito da USP e Jurista Dalmo Dallari durante o I Congresso Brasileiro de Direito e Saúde, promovido pela Comissão de Saúde da OAB-CE em conjunto com órgãos e entidades parceiros:
A saúde é um instrumento de negociação política, pois tem representação econômica, podendo ser tratada como mercadoria. Daí a necessidade de o Estado atuar como o principal garantidor de saúde à população, já que a sua ausência na oferta desses serviços pode colocar o cidadão refém dos interesses econômicos”. (I Congresso Brasileiro de Direito e Saúde, Ceará, 2011)
RELATÓRIO QUE FUNDAMENTOU O ACÓRDÃO Nº 31/2017-TCU-PLENÁRIO APONTA RISCOS COM A COMERCIALIZAÇÃO DE HEMODERIVADOS
"166. A justificativa para a União aportar recursos na capitalização de empresa voltada para a autossuficiência nesse setor é inquestionável. Os riscos no comercio de hemoderivados sinalizam para a perfeição da Hemobrás no figurino do art. 173, da Constituição da República, que autoriza a exploração direta de atividade econômica pelo Estado para atender ‘a relevante interesse coletivo’, conforme definido em lei. Esse é o caso perfeito para tal exploração, como será contextualizado adiante.
167. Ao ponto que se chega, fecha-se o círculo: se a vedação do art. 199, § 4º, da Constituição da República, tem por destinatária exclusiva a iniciativa privada, por evidente que passa a ter relevante interesse público que o Estado assuma a produção dos hemoderivados como uma atividade que tanto envolve serviço público quanto atividade econômica, daí a possibilidade constitucional de se haver escolhido executar a prestação por meio de uma empresa pública, com as receitas expressamente previstas em sua lei de criação. Ademais, o art. 200, inciso I, da Lei Fundamental, insere na competência do SUS a produção de imunobiológicos e hemoderivados.
168. A vedação constitucional é resultado de intensa atuação da sociedade durante os debates da Assembleia Nacional Constituinte. Há registro histórico de que teria sido aprovada em primeiro turno a ‘estatização da rede de coleta, pesquisa, tratamento e transfusão de sangue e seus derivados’. (http://www6.ensp.fiocruz.br/radis/sites/default/files/radis_72.pdf).
169. Durante a dialética, segundo a referida publicação, houve constituintes contrários à medida que criticaram: ‘Como pode o governo assumir a comercialização do sangue se falta medicamento e muitas vezes se espera 24 horas, uma semana para esse atendimento, quando o sangue tem que ser fornecido na hora?’. Os defensores, por sua vez, atestavam sua confiança: ‘Estarei do lado daqueles que defendem o controle absoluto do sangue por parte do governo’.
170. Em entrevista à edição 10 da Tema/RADIS, publicada em 1988, logo após a aprovação do texto batizado de ‘emenda do sangue’, o sociólogo Herbert José de Sousa (‘Betinho’), vítima pelo vírus HIV em transfusão, resumiu a motivação da luta: ‘Acho que a aids criminalizou o sangue, porque é mortal. Não entendo como o sangue possa ser objeto de transação comercial, pois foi exatamente essa natureza da transfusão que nos levou a viver essa desgraça’. E destaca a publicação histórica: ‘A aids legitimou o poder público a fechar os bancos de sangue’.
171. A legitimação do Poder Público para acabar com a comercialização do sangue só veio se materializar, de fato, com a Lei 10.205/2001, batizada de ‘Lei Betinho’, que revogou a participação da iniciativa privada na atividade hemoterápica, até então permitida pelo art. 3º da Lei 4.701/1965. A regulamentação do art. 199, § 4º da Constituição de 1988, porém, foi motivo de infindáveis e acirradas discussões na sociedade civil e no Congresso Nacional.
172. De acordo com o Boletim Informativo da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), entre os principais avanços contidos na ‘Lei Betinho’ estão: a proibição da comercialização do sangue e seus derivados; a possibilidade de reembolso de custos envolvidos no processamento do sangue para obtenção dos componentes e derivados pelos hemocentros e fábricas; a oficialização do Sistema Nacional de Sangue (Sinasan) e a definição de sua organização em níveis federal, estadual e municipal e a criação da hemorrede nacional que, em 2001, contava com mais de três mil unidades, entre hemocentros, hemonúcleos, agências transfusionais, postos de coleta, centrais sorológicas e unidades de coleta e transfusão (http://www.anvisa.gov.br/divulga/public/boletim/07_01.pdf).
173. A regulamentação, entretanto, não chegou a criar privilégio ou monopólio estatal, permanecendo o funcionamento de bancos de sangue particulares que atuam nesse setor e são reembolsados pelos custos envolvidos no processamento de sangue. Esses bancos particulares operam sob a vigilância da Anvisa, conforme normativos editados pela referida Agência.
174. Embora este não seja o objetivo da apreciação desta consulta, não se tem conhecimento do ajuizamento de ação no STF para questionar, especificamente, o reembolso de custos envolvidos no processamento do sangue para obtenção dos componentes e derivados pelos hemocentros e fábricas.
175. No plano jurídico, tem-se conhecimento de ação ajuizada em face do art. 199, § 4º da Magna Carta, a qual questiona Lei do Estado do Espírito Santo que incentiva a doação de sangue com isenções de natureza cultural (ADI 3512). Ao relatar a matéria, o Ministro Eros Grau assevera que o dispositivo constitucional em tela ‘estabelece que a lei disporá sobre condições e requisitos que facilitem a coleta de sangue. Veda todo tipo de comercialização, mas admite o estímulo à coleta de sangue’, destacando que o referido normativo será tanto federal quanto estadual.
176. Na ADI mencionada, observa o relator, ao longo de sua fundamentação, que o mercado não é uma instituição espontânea, natural – não é um lócus naturalis –, mas uma instituição que nasce graças a determinadas reformas institucionais, operando com fundamento em normas jurídicas que o regulam, o limitam, o conformam. E segue: ‘fato é que, a deixarmos a economia de mercado desenvolver-se de acordo com as suas próprias leis, ela criaria grandes e permanentes males’.
177. O mercado de fato, como assinala o ministro do STF, é movido por interesses egoísticos – a busca do maior lucro possível – e a sua relação típica é a relação de intercâmbio. Daí a necessidade de redobrar os cuidados com a produção industrial de um mercado com potencial de abastecer não apenas o SUS, mas de fracionar o plasma ou produtos intermediários obtidos no exterior para prestação de serviços a outros países.
178. Não parece ser a dicção constitucional proibir a produção industrial de hemoderivados pelo Poder Público mediante aquisição de insumos de forma lícita, sem que haja violação da dignidade da pessoa humana e se ponha em risco a segurança e a saúde da população.
179. Razões para afastar a comercialização do sangue não faltam. O Relatório final da Comissão Mista de Inquérito que investigou a ‘Biopirataria’ aponta que sangue humano, como o de índios de algumas tribos de Rondônia, já foi colocado à venda no site de empresa norte-americana. Registra, nas conclusões, que a venda na internet inclui sangue de etnias de todo o mundo, inclusive dos índios brasileiros (http://www.camara.gov.br/internet/comissao/index/cpi/Rel_Fin_CPI_Biopirataria.pdf).
180. O artigo ‘Bioética e Direito’ publicado na Revista de Bioética, disponível no site do Conselho Federal de Medicina (CFM), aborda aspectos relevantes da proibição de comercialização de órgãos transplantáveis, decorrente do preceito constitucional e secundada por preceito da Lei 8.489/1992 (DALLARI, Sueli Gandolfi e outros, http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/viewFile/498/315). Os riscos com o comércio de sangue são semelhantes e exigem atenção e cuidado específicos por parte do Estado.
181. Dados oficiais reforçam a preocupação dos nobres juristas com a proteção da saúde das pessoas e a dignidade humana. Segundo informação disponível no site do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o tráfico de pessoas para comercialização de órgãos é um mercado cruel, que explora o desespero de ambos os lados: doentes que podem pagar por um órgão imprescindível para viver e pessoas que ponderam entre o órgão sadio que têm - e que avaliam que podem dispor sem risco de vida - e o dinheiro que receberão com a venda (http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/cidadania-direito-de-todos/trafico-de-pessoas).
182. Ainda de acordo com as informações do referido site oficial, o caso mais conhecido apurado no Brasil ocorreu no início dos anos 2000, com o tráfico internacional que ligava o Estado de Pernambuco à África do Sul. As vítimas eram aliciadas, vendiam um rim na área urbana de Recife e eram levadas para Durban, na África do Sul, onde se submetiam à cirurgia para retirada desse órgão. Em 2004, o Ministério Público Federal (MPF) denunciou 28 pessoas pelo crime. A estimativa foi de que o esquema criminoso movimentou em torno de US$ 4,5 milhões com a comercialização de cerca de 30 órgãos.
183. O comércio de órgãos também foi objeto de investigação no âmbito da CPI, cujo Relatório observa, especificamente em relação ao tráfico de pessoas para fins de remoção de órgãos, que tal modalidade se manifesta com frequência na eliminação de pessoas, sobretudo em situação de risco. O Relatório traz, ainda, alerta para necessidade de dispensar atenção às ocorrências disfarçadas de tráfico de órgãos. Nos depoimentos, há relato de que, em 2005, a Polícia Federal desbaratou em Recife (PE) uma quadrilha que levava 50 pessoas para Israel com a finalidade de comercializar rins, por US$ 10 mil (http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/infograficos/2012/12/info-trafico-de-pessoas).
184. O Tribunal também demonstra preocupação com os riscos desse mercado, tanto que realiza fiscalização permanente para acompanhar a conclusão das fábricas para produção de hemoderivados. O cuidado está consignado no Voto do relator, Ministro Aroldo Cedraz, que fundamenta o Acórdão 1.444/2014-TCU/Plenário, nos seguintes termos:
18. O diretor técnico da Saúde/D2 chama a atenção para a demora do processo de transferência de tecnologia para a produção de hemoderivados pela Hemobrás, que já se encontra com prazo bem superior ao previsto, numa área sensível, com materialidade destacada e com antecedentes negativos - a exemplo do episódio ‘Máfia dos Vampiros’, detectado no início da década passada nas aquisições de hemoderivados pelo Ministério da Saúde, sendo a criação da Hemobrás uma das respostas para o enfrentamento do problema (grifou-se).
185. Nesse mercado egoísta, que pode facilmente violar direitos humanos e pôr em risco a segurança e a própria saúde da população, os investimentos na ‘Política Nacional de Sangue, Componentes e Hemoderivados’ ganham relevo, pois deles depende a autosuficiência do País nesse setor e a harmonização das ações do Poder Público em todos os níveis de governo, conforme prevê o art. 8º da ‘Lei Betinho’."
Fonte: Comunicação AudTCU com informações do G1