Julgamento do STF sobre igualdade de gênero pode gerar impacto fiscal para União e Estados

*Lucieni Pereira

Na última sexta-feira (10/11), o Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal (STF) deu início ao julgamento de mérito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7433, ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores contra a lei federal específica que disciplina o ingresso na carreira de praças da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) e limita a 10% a participação de mulheres nos quadros da instituição.

O julgamento da ação mencionada, que será encerrado no dia 20 de novembro, afetará as decisões de outras dezessete ações recentemente ajuizadas no STF pela Procuradoria-Geral da República contra três leis federais que regulamentam o ingresso nas carreiras militares das Forças Armadas (Marinha, Aeronáutica e Exército) e quatorze leis específicas estaduais que disciplinam o ingresso nas carreiras da Polícia Militar e Corpo de Bombeiros Militar dos Estados do Centro-Oeste (Goiás e Mato Grosso), do Sudeste (Rio de Janeiro e Minas Gerais), do Nordeste (Ceará, Paraíba, Piauí, Maranhão e Sergipe), do Norte (Amazonas, Pará, Roraima, e Tocantins) e do Sul (Santa Catarina). As dezoito ações estão distribuídas para relatoria dos ministros André Mendonça, Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Cássio Nunes Marques, Cristiano Zanin, Dias Toffoli e Luiz Fux.

Em resumo, as 18 ações têm em comum o mesmo argumento jurídico, qual seja, aplicar às carreiras dos órgãos militares das Forças Armadas e dos Estados (Polícias Militares e Corpos de Bombeiros) o mesmo regime jurídico dos servidores civis estabelecido pelo art. 39, § 3º da CF, desconsiderando o regime especial dos militares previsto  de forma objetiva no § 1º do art. 42, c/c inciso VIII, do § 3º do art. 142 da CF. Sob alegação de misoginia e preconceito em relação à igualdade de gênero no acesso a cargos públicos militares, os autores das ações reivindicam que STF estenda aos militares federais e estaduais a aplicação do regime jurídico-constitucional dos servidores civis, que assegura, dentre outros direitos sociais, a “proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei” e a “proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil”, extensivos aos civis por previsão expressa no § 3º do art. 39 da Constituição Federal.

No voto apresentado para julgamento definitivo no Plenário Virtual do STF, o relator recorre a dois julgados sobre matéria de gênero assentados na ADI nº 4.277 e ADPF nº 132, da relatoria do Ministro Ayres Britto, em que se afirmou:

O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da CF, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de ‘promover o bem de todos’.

Todavia, ao invocar os precedentes mencionados, a fundamentação da ADI nº 7433 demonstra-se contraditória, uma vez que não considera a disposição expressa que estabelece diferenças entre os regimes jurídicos de militares e servidores civis. O voto não menciona as restrições do § 1º do art. 42 e do inciso VIII, do § 3º do art. 142 da Constituição Federal, além de ignorar diversos julgados do próprio STF que reconhecem tais diferenças.

As fragilidades de fundamentação se reproduzem nas dezoito ações que tramitam no STF, que não consideram o fato de o § 1º do art. 42 e o inciso VIII, do § 3º do art. 142 da Constituição Federal disciplinarem um regime jurídico especial e mais restritivo, que exclui dos militares um conjunto de direitos assegurados aos servidores civis (vide tabela), dentre eles a proibição de estabelecer diferença de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo e idade, tendo em vista a previsão constitucional que possibilita a fixação, por lei, de limite de idade e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra. A exclusão de direitos consta do entendimento assentado no AI nº 722.490 (AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 3-2-2009, 1ª T, DJE de 6-3-2009).

A questão é bastante controversa e pode ter repercussões que vão além da política de gestão de pessoas, com risco de impacto fiscal de substancial relevância que não foi sequer cogitado. Isso porque a diferença dos regimes entre militares e servidores civis não se restringe a aspectos de gênero, atingindo direitos que, se forem igualados por uma decisão judicial, acarretarão impacto fiscal com ações indenizatórias e com o fluxo das despesas. A título de exemplo, merece citação o direito a receber valor não inferior ao salário-mínimo, remuneração do trabalho noturno superior ao diurno, limite de jornada de trabalho, repouso semanal preferencialmente aos domingos, horas extras superiores a, no mínimo, 50% da hora normal, redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança. Ao todo, a Constituição Federal suprimiu dos militares um conjunto de nove direitos sociais assegurados apenas aos servidores civis.

Em 2008, por exemplo, o STF julgou procedente recurso extraordinário da União que questionou decisão judicial que lhe condenou a pagar, a um ex-recruta, diferença entre os valores recebidos de soldo e o salário-mínimo no período em que desempenhou o serviço militar obrigatório nas Forças Armadas (RE nº 570.177), um dos direitos sociais dos servidores civis não extensivo aos militares. Ao fundamentar a decisão com base nos incisos XX e XXX do art. 7º e § 3º do art. 39 da CF pavimentará uma via perigosa que poderá resultar em ações de ressarcimento de vários direitos sociais restritos aos civis.

Cumpre observar que, em 2017, o Ministro Gilmar Mendes manifestou preocupação com as peculiaridades dos concursos das Forças Armadas durante o  julgamento sobre reserva de vagas para concursos públicos federais, em razão do que ele qualificou como existência de um “certo expansionismo que tem implicações” em todo contexto de discussão da lei de cotas (ADC nº 41).

O tema da inserção da mulher nas Forças Armadas brasileiras é tão complexo quanto controverso. A discussão envolve direitos e garantias individuais, isenção da mulher do serviço militar obrigatório, além da necessidade de considerar fatores sob várias perspectivas - sob a esfera militar, social, cultural -, sem perder de vista as especificidades das Forças Armadas, cuja missão tem peculiaridades, inclusive em função de atividades que devem ser cumpridas por imperativo de compromissos internacionais e de guerra (art. 142, § 3º, X, CF).

Estudos ressaltam que "não há solução simples para o tema do ingresso de mulheres nas Forças Armadas”. Perspectiva de mudança se vislumbra com a tramitação do Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 213, de 2015, apresentado para garantir às mulheres o voluntariado do serviço militar, com alistamento na Marinha, Exército ou Aeronáutica. O Projeto fixa o prazo de até dois anos para que as instituições adequem seus alojamentos, vestiários e outras adaptações necessárias para o oferecimento do Serviço Militar Voluntário às brasileiras.

Embora arquivada, a proposta traz alguns aspectos que precisam ser amplamente discutidos com a participação dos órgãos envolvidos, especialmente do Exército Brasileiro, ao qual os órgãos militares estaduais e distrital mantêm vínculo institucional por previsão expressa na Carta Política (art. 144, § 6º), o Parlamento e segmentos da sociedade. Deslocar esse debate do Congresso Nacional para o STF, amparado numa pseuro-simetria entre os regimes dos servidores civis e militares, tem o risco de criar abalos num segmento específico do serviço público, que o constituinte originário decidiu dispensar, de forma expressa, um tratamento completamente distinto.

Diante dos riscos apontados, de ordem fiscal e operacional, revela-se prudente que a ADI nº 7433/DF seja retirada do Plenário Virtual, para que seu julgamento se dê no Plenário físico do STF, juntamente com as demais ações, que merecem ser amplamente debatidas em audiência pública dada a relevância, a complexidade, a repercussão e as diversas relatorias sobre ações que guardam conexão material.

Em 13/11/2023, o Ministro André Mendonça pediu vista da ADI nº 7433, suspenso por ora o julgamento no Plenário Virtual. 

*Lucieni Pereira é Especialista em Finanças Públicas, Professora de Gestão Fiscal, Auditora Federal de Controle Externo-Área de Controle Externo do Tribunal de Contas da União, Presidente da Associação da Auditoria de Controle Externo do Tribunal de Contas da União (AudTCU) e Diretora de Assuntos da Área Federal da Confederação Nacional dos Servidores Públicos (CNSP).

Disclaimer: As opiniões da autora não vinculam os membros das entidades associativas que representa, tampouco reflete o posicionamento oficial do Tribunal de Contas da União. 

 

Art. 7º, Inciso, CF

Descrição dos Direitos Sociais

Servidor Civil

Militar

§ 3º, art. 39 CF

Inciso VIII, § 3º, art. 142 CF

IV

salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim

SIM

NÃO

VII

garantia de salário, nunca inferior ao mínimo, para os que percebem remuneração variável

SIM

NÃO

VIII

décimo terceiro salário com base na remuneração integral ou no valor da aposentadoria

SIM

SIM

IX

remuneração do trabalho noturno superior à do diurno

SIM

NÃO

XII

salário-família pago em razão do dependente do trabalhador de baixa renda nos termos da lei

SIM

SIM

XIII

duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho

SIM

NÃO

XV

repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos

SIM

NÃO

XVI

remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinqüenta por cento à do normal

SIM

NÃO

XVII

gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal

SIM

SIM

XVIII

licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias

SIM

SIM

XIX

licença-paternidade, nos termos fixados em lei

SIM

SIM

XX

proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei

SIM

NÃO

XXII

redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança

SIM

NÃO

XXV

assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até 5 (cinco) anos de idade em creches e pré-escolas

NÃO

SIM

XXX

proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil

SIM

NÃO

 

Fonte: Comunicação AudTCU

Imprimir   Email